Tradução — Balas de várias cores (Sam Pink, 2020)

cavername
6 min readApr 28, 2020

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Conheci Sam Pink ontem, literalmente. Foi pelo Lit Hub, em uma notícia sobre seu novo livro de contos, The ice cream man & others stories. Li os dois primeiros contos pela amostra grátis da Amazon e fiquei entusiasmado e com vontade de traduzir um deles, Different-colored candy. Depois pesquisei e soube que ele já tem uma porção de livros, e agora estou lendo a novela Rontel.

Fiquei pegado pelo rigor formal dele — uma frase por parágrafo, sempre. Essa opção coloca a narrativa num trote fatídico, dá a impressão de que as coisas que acontecem parecem ser as únicas que poderiam acontecer. Isso deve ter a ver com as poucas palavras que cada frase/parágrafo traz. Escrever tão pouco também parece dar mais peso a cada escolha semântica e ao som total do conjunto.

Ritmo, semântica e sonoridade — taí a origem do sabor de poesia que fica no fim das leituras. Ainda bem que, no que li até agora, e no que vi falarem sobre ele, não tem nada de “prosa poética”, coisa que, para o meu paladar, é açucarada demais. É tudo muito sóbrio e prosaico. A poesia nasce meio inesperada, parece uma armadilha num caminho que você já conhece.

Esse foi também o motivo pelo qual quis traduzir esse conto. Espero ter conseguido desmontar e remontar a armadilha sem que ela deixe de funcionar.

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Balas de várias cores — Sam Pink (The ice cream man & other stories, 2020)

Essa noite, dois carros passaram em um racha enquanto eu esperava o ônibus num ponto da avenida Milwaukee.

Um tentou ultrapassar o outro e não conseguiu, brecando e acelerando muitas vezes até guinar para cima de alguns carros estacionados em um cruzamento.

Houve berros, e então um som alto de batida.

Quando tudo se assentou, quatro ou cinco pessoas saíram de um dos carros do racha e correram.

Eu e um outro cara fomos até o acidente.

Nós fomos até um dos carros batidos e ajudamos a remover duas pessoas: um homem e uma mulher grávida.

A mulher grávida deu alguns passos, então desmaiou dura no asfalto.

Outro passante veio pela rua e se ajoelhou perto da mulher grávida, ajudando a reanimá-la e acalmá-la, falando espanhol.

Eu fiquei a uns metros de distância, desviando o tráfego.

Apressando alguns carros com uma mão, parando alguns com a outra.

Todo mundo fazendo como eu mandava.

Para eles, eu era um comandante e um homem da lei.

Fazendo contato visual e acenando em casos de titubeio.

Sim, você pode ir.

Não, você não pode.

Quando um carro timidamente tentou passar uma segunda vez, eu fiz a cara de quem diz “então é assim que vai ser?”.

Depois de um tempo, chegaram a ambulância e o guincho.

Paramédicos colocaram a mulher grávida em uma maca e a levaram para a ambulância.

Eu fiquei pela rua por algum tempo.

Não mais participando, só fiquei por lá.

E o tráfego tomou conta de si novamente.

Vidro no chão refletia cores dos postes e semáforos.

Azul escuro do asfalto por baixo.

Se eu tivesse um botão de desligar, seria aquele o momento em que eu o usaria.

Não, eu provavelmente já o teria usado milhares de vezes.

Na calçada, conversei com a pessoa que tinha segurado a mão da mulher grávida na rua.

Basicamente intercambiamos a palavra “merda” de diversas formas.

Como se quiséssemos conversar mais, ficar perto um do outro mais um pouco.

Mas então eu disse “Tá certo, boa noite pra você”, e decidi voltar a pé para casa.

Quando passei por uma casa de câmbio, eu vi um veterano paralítico que sempre ficava pela rua.

Ele estava na cadeira de rodas, o rosto coberto de poeira e a cabeça caída para o lado, apoiada em um treco.

Moletom dos Cubs.

Na última vez que o vi, ele estava estacionado por ali com algum tipo de pastel enorme preso na mão — durex enrolado na sua mão e no seu pulso um monte de vezes.

“Oi, é, você me daria um dinheiro pra comer?”, ele disse agora.

Sua voz era aguda, abafada, como se viesse da fossa nasal.

“Beleza, o que você quer?”, eu disse.

Ele disse “Bom, assim, depende do lugar.”

“De alguma loja por aqui.”

Ele moveu um dedo na direção de um lugar do outro lado da rua. “Compra um, é, um burrito, por favor.”

“Do quê.”

“Acho que, bom, de carne.”

“Beleza.”

Enquanto eu esperava para atravessar a rua, ele disse: “Sem nada, é, nada picante.”

“Sem pimenta.”

“Sem, por favor.”

No restaurante, fiz o pedido e fiquei pelo caixa, olhando para um pote de balas de várias cores.

Bom, taí, eu pensei.

Aí está um pote de balas de várias cores.

Sim.

Talvez vocês todas permaneçam sendo quem são através das suas diferenças, sem nunca virar suas diferenças.

Sim.

A moça que fez meu pedido disse “Você pode se sentar, se quiser.”

Sam Pink é, também, artista visual. Veja aqui: https://www.instagram.com/sam_pink_art/

Eu sentei à uma mesa e fiquei olhando a TV, sem prestar atenção, uma forma de evitar decidir para onde deveria olhar.

Um casal da mesa ao lado riu de alguma coisa na TV.

Eu virei para olhá-los, uma reação puramente causada pelo som.

Nããããããããããão…

Procure abrigo, soldado!

Mas já era tarde.

Nós todos fizemos contato visual e pareceu que eu entraria numa espécie de acordo pelo qual nós teríamos que interagir.

Tendo olhado uns para os outros, nós agora deveríamos rumar juntos para o programa da TV — nossas crenças pessoais, nossas ideias, nossos eus.

Vou ser derrotado, eu pensei.

Eu tentei manter um olhar firme para o chão.

Mas foi difícil.

Meu rosto esquentou, o pescoço tenso.

Mantenha a posição, soldado!

Seja corajoso!

Eu estava prestes a me render, levantar e correr pela porta.

Mas então minha comida ficou pronta.

Boa.

Bom trabalho, soldado!

Ah, valeu!

Eu atravessei a rua com a comida.

O veterano na cadeira de rodas a pegou com as mãos tremendo.

Eu agachei do lado dele, de costas contra a parede.

“Você quer uns guardanapos?”, eu disse.

“Ah, bom, eu quero. Seria bom.”

Dei a ele guardanapos.

Nós comemos juntos na calçada.

Nenhum de nós falou.

Eu podia vê-lo com o canto dos olhos enquanto olhava para a rua.

Eu fui limpando minha mão na parte de dentro do pacote de papel pardo porque eu não tinha guardanapo.

Funcionou, mas não funcionou.

De repente eu disse “Está bom, o tempo.”

“Oh, está ótimo”, ele disse.

Sim, ótimo.

Bom demais pra merda que eu sou.

Depois de um longo silêncio, ele disse “Por um acaso você não teria um garfo ou uma colher nessa mochila, ãh?”

Dei a ele um garfo.

Ele comeu as sobras que tinham caído do burrito, raspando o isopor com o garfo, o braço tremendo.

Eu terminei meus tacos, limpei as mãos no papel pardo, depois limpei minha boca e meu rosto com os meus braços suados.

“Bom, vou nessa, amigo”, eu disse.

“Beleza, tchau. Muito obrigado. Deus o abençoe.”

Eu peguei o lixo dele e o meu lixo e coloquei na mochila.

Joguei o lixo numa caçamba ali perto.

Mijei do lado da caçamba.

As borbulhas que se formaram na sujeira do chão pareciam os muitos olhos de algo esperando para me levar lá para baixo.

Mas não nessa noite.

Não, não ainda.

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