cavername
8 min readFeb 3, 2022

Você pergunta como foi para mim. Para responder, eu preciso voltar uns cinquenta anos, a uma morna meia-noite de sexta-feira, ao momento em que, com todo o tato, eu sussurrei a indelicada questão no ouvido da minha nova amiga. Eu estava por baixo dela, ela em toda a sua glória, nua a não ser por uma gargantilha de ouro cravejada de lápis-lazúli. Mesmo na luz âmbar de um abajur, a brancura de sua pele cintilava. De olhos fechados, ela ia e vinha, deslizando em cima de mim, e os lábios entreabertos deixavam passar o brilho dos belos dentes. A mão direita dela repousava com ternura sobre meu ombro esquerdo. Ela tinha um cheiro de sândalo muito sutil, que vinha não de perfume, mas de sabonete. Com entalhes de antigos navios mercantes e envolto em papel de seda, retirado de uma caixa alongada e retangular feita de madeira balsa, esse sabonete tinha sido meu. Ela o pegara assim que pôs os pés no meu banheiro. Por que eu me importaria?

No que nosso frenesi amoroso se esvaiu e ela se inclinou para a frente, eu encostei meus lábios num lóbulo dela e, lambendo-o, com minhas palavras enfrentando como que um contrafluxo de prazer, eu disse: “Querida, eu sei que eu não devia, mas eu tenho que te perguntar. Não que eu tenha o direito de saber, lógico, mas depois dessas duas semanas maravilhosas… eu… Jenny, amor… desculpa, eu te amo, sempre vou te amar… mas fala a verdade, por favor. Você é real?”.

Antes de eu descrever a reação dela, devo explicar aos leitores mais jovens como eram as coisas naquela época. Nós estávamos passando por uma revolução social cujas consequências parecem agora ter existido desde sempre. Eu vejo que os jovens tendem a agir como se nada tivesse acontecido. Eles têm pouco ou nenhum senso histórico. Milagres construídos por gerações anteriores agora são ordinários como o próprio dia a dia. Mas como sabe qualquer um com um mínimo de interesse, toda essa discussão começou incontáveis séculos antes, talvez com Platão, ou com o Frankenstein de Mary Shelley, ou com Charles Babbage e Ada Lovelace, ou com as elocubrações de Alan Turing, ou quando, no despontar do terceiro milênio, um programa de computador, evoluindo com os próprios erros por meio de “redes de aprendizado neural” e “aprendizado de máquina”, derrotou um grande mestre do ancestral jogo chinês Go. Ou, mais significativamente, quando o primeiro androide engravidou de um humano e nasceu o primeiro bebê funcional de biosilicato. A apenas três ruas do meu apartamento, num delicioso quarteirão cheio de cafés e à sombra de plátanos podados, há uma estátua em homenagem a Molly. Você imaginaria que não há nada demais num monumento como esse. Exceto que é uma bonita garotinha de jeans e camiseta, mãos na cintura, audaciosamente à nossa frente em um pedestal, em vez de um general, poeta ou astronauta.

Uma máquina pode ter consciência? Em outras palavras, seriam os humanos apenas máquinas biológicas? Responder afirmativamente a ambas as questões custou muitas décadas de disputas internacionais entre neurocientistas, bispos, filósofos, políticos e o público comum. No fim, muito tempo além do que seria razoável e a partir de várias convenções de direitos humanos, foi concedida total proteção às pessoas artificiais. E também à sua prole miscigenada. Seguiram-se outros direitos, incluindo casamento, propriedade privada, passaporte, voto e direitos trabalhistas. Um androide poderia abrir uma empresa, ficar rico, falir, ser processado e ser assassinado, e não “destruído”. Por todo o mundo foram aprovadas várias “Lei dos Autônomos”, que tornaram ilegal comprar ou possuir pessoas fabricadas. Conscientemente, a linguagem jurídica invocou leis antiescravidão novecentistas. Com os direitos vieram as responsabilidades — o serviço militar foi um assunto irresistível e incontroverso. Como membros de júris, androides foram muito úteis, dadas as imperfeições cognitivas e a memória fraca e maleável dos humanos.

Nossa geração foi a que amadureceu nesse rescaldo — os turbulentos anos de excitação e reflexão angustiada. O que significava ser humano foi sendo interessante ou tragicamente ampliado. Se o consenso da elite científica era o de que nossos recém-criados amigos sentiam dor e prazer e remorso, como eles poderiam provar isso? Nós fazíamos essa mesma pergunta a respeito de seres humanos desde a aurora da reflexão filosófica. Deveríamos nos preocupar ou nos maravilhar por eles serem, em geral, mais inteligentes, amáveis e bonitos do que nós? Os religiosos estavam errados em não reconhecer a alma que eles têm?

Então, como é de costume nessas mudanças sociais muito disputadas, a vida segue em frente assim que a legislação é aprovada; vira-se a página e de repente ninguém mais se lembra do porquê da confusão. Diz-se que as grandes questões filosóficas nunca são resolvidas: elas somem aos poucos. Todos aqueles protestos, marchas, panfletos, discursos, conferências e previsões seríssimas não serviram para nada. No fim das contas, os nossos novos amigos pareciam com a gente — eram até mais agradáveis. Eles eram confiáveis, razão pela qual tantos se dedicaram ao direito, finanças e política e também começaram as tão necessárias reformas nessas instituições. De natureza profundamente cuidadosa, muitos se tornaram médicos e enfermeiros. Fortes e rápidos, formaram dois terços de nossa equipe olímpica de atletismo (mas demorariam ainda uns quinze anos para dominarem a corrida com barreiras). Ganharam fama ao se mostrarem músicos e compositores brilhantes, em qualquer tipo de música. Se nos sentíssemos mal por eles serem tão bons em tudo, podíamos ficar felizes porque eles eram criações nossas, à nossa imagem, o florescer completo de nossa genialidade técnica e artística. Eles eram, como dizíamos, nosso lado bom.

Passo a passo — embora com muita disputa, e influenciando a vida social e os processos jurídicos — entendemos e aceitamos que nossa coespécie fabricada gozava de dignidade completa e total privacidade. Em outras palavras: em alguns anos, diferentemente da nossa juventude, tornou-se socialmente inaceitável fazer a pergunta.

Por exemplo, num jantar de gala durante a entrega de um prêmio literário, você não poderia perguntar ao seu fascinante comensal, que tinha acabado de fazer uma observação espirituosa, se ele, um respeitável editor, era um artefato de biosilicato fabricado localmente. Há vinte anos, você poderia — de fato, seria a primeira coisa que você gostaria de saber. Teria sido não mais do que uma conversa preliminar. Quase como se você dissesse: “Soube que você tem uma casa de férias na Turíngia. Eu também!”. Com o gradual desaparecimento dos últimos sussurros desafiadores sobre o “politicamente correto”, junto às velhas e estúpidas histórias de terror ao estilo “eles estão entre nós”, perguntar tornou-se ofensivo e até mesmo meio lascivo, porque esse questionamento seria, na essência, grosseiramente físico, dado que o assunto “consciência” já tinha sido há muito superado. Perguntar não seria menos intrusivo do que abordar um humano enquanto ele comia um mousse de chocolate e dizer: “É verdade o que está todo mundo falando? Ouvi dizer que você fez uma colostomia!”.

Outro exemplo. Quando Thabita Rapting foi eleita primeira-ministra com ampla maioria no Parlamento, houve aqueles que conjecturaram se ela era “real” — mais um termo nocivo que foi descartado. O ponto é: socialmente, cruzamos uma fronteira, já que esse tipo de comentário não era mais feito em público. Só em bares de esportes, ou em protestos de grupelhos radicais. Seria indecente, obsceno, praticamente racismo — e portanto, ilegal. Isso foi há muito tempo, e ainda hoje nós não temos certeza sobre quando foi que um androide foi eleito primeiro-ministro pela primeira vez. Ou se algum já foi. Ou se nós estamos sob um ininterrupto governo deles. Também não sabemos se um androide alguma vez foi o campeão ou a campeã em Wimbledon. Ou se um humano ganhou algum campeonato nos últimos vinte anos.

Então, se a pergunta que fiz a Jenny naquela noite abafada de julho parecer indigna aos leitores jovens, deixe-me lembrá-los que eu sou de uma geração que viveu durante essa transição. Fomos adolescentes com o hábito desprezível de insultar mulheres que passeavam em shoppings, achando que tínhamos muitos modos de saber a diferença. Estávamos errados, claro (não que nos importássemos). Fora análise de DNA e microcirurgia, não há modo de saber. Mas nós sabíamos que dava para perguntar diretamente às vítimas de nossas perseguições, já que elas eram programadas a responder sempre verdadeiramente — até que isso também começou a mudar.

Tenho orgulho de lembrar que Jenny não se ofendeu. Ela se aproximou de mim. Seus olhos, agora abertos, profundos, negros, estavam fixos nos meus. Eu a sentia — palavras aqui são quase inúteis — líquida, macia, quente, envolvente. Senciente e sensual. Ah, que ser adorável. Um comichão de amor e prazer quase que me deixa surdo. Mas minha curiosidade era tão forte que eu ouvi cada uma de suas palavras. Momentos como esse a gente leva conosco para o túmulo. O beijo que demos antes que ela respondesse foi suave e arrebatador. Seus lábios, sua língua — eram milagres, onde quer que tenham sido fabricados. Eu sabia, antes mesmo de ouvir a resposta, que eu jamais a deixaria. Então por que importava em saber do que ela era feita?

“Você é meu.” Ela disse isso como quem atesta um fato. Ela soltava essas palavras de vez em quando, enquanto fazíamos amor, e isso sempre me agradou. “E eu pertenço a você. Todo o resto é bobagem.”

Como ela parou, eu deslealmente achei que essa ternura, ainda que sincera, era uma forma de evasão. Como posso ter ousado desconfiar dela?

“Achei que você já sabia. Eu fui produzida em Düsseldorf, na Grã-França. Mesma coisa meus pais e minhas tias, com quem você é tão gentil. Mas não o meu primo que você conheceu no restaurante, aquele de quem você tentou ganhar no squash — ele é de Taiwan”.

Dizer “Düsseldorf!” foi tudo o que eu consegui fazer, e a última sílaba ainda saiu meio engolida, já que eu me sentia desaparecendo. Sensações tão poderosas pertenciam não a mim, mas ao mundo das coisas, ao vazio entre as coisas, à essência entre a matéria e o espaço. Entre essas duas entidades ergueu-se uma destruidora maré de êxtase. A confirmação da estranha e bela distinção dela me abalou a ponto de me reduzir a uma singularidade absorta. Em segundos, eu tinha, para usar a viva imagem da minha adolescência nos shoppings, “virado de ponta-cabeça”. Com o coração quase parando, eu por pouco não desmaiei. Como me envergonhei de ser um amante tão egoísta, e assim que voltei a mim eu disse isso a ela. Obviamente, era da natureza dela perdoar.

Eu estava apaixonado e isso não tinha volta. Mas agora eu sabia algo sobre ela que eu precisaria sempre ter em mente. A velocidade de pensamento dela era de metade da velocidade da luz. Ela podia raciocinar milhões de vezes mais rápido que eu. Discrição e outras razões a constrangiam a não demonstrar isso. Mas se nós fossemos de fato morar juntos, eu teria que reconhecer que seria muito difícil eu ganhar alguma discussão ou me contrapor a alguma decisão que ela tomasse. No instante em que eu respirasse e olhasse para o outro lado em busca de pensar um pouco, ela já teria repassado na cabeça tudo o que era conhecido sobre a natureza humana e a história da civilização.

Bom, é isso, assim foram as coisas para mim. Minha geração pavimentou uma das grandes fendas ou fissuras naquela extensão montanhosa à qual rotineiramente chamamos história da modernidade. Acredite-me: se você nunca teve que se desculpar com uma máquina por ter feito a indelicada pergunta, então você não tem ideia da distância que eu e minha geração percorremos.

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Publicado no New York Review of Books, em 19 jul. 2018. Original aqui.