Ficção — Um iceberg desceu do céu

cavername
7 min readJan 18, 2022

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O iceberg nos atrai mais que o navio,

mesmo acabando com a viagem.

Mesmo pairando imóvel, nuvem pétrea,

e o mar um mármore revolto.

Elizabeth Bishop

Falam muita mentira. Mas demais. Que os ET vieram junto, que foi coisa de computador. De um tudo. E pra que conversaram comigo? O repórter pegou meu nome, o que eu faço, onde moro. Falaram com os meus meninos. E não teve da minha conversa em lugar nenhum, que eu vi. Sendo que de todo mundo daqui só eu estava lá. Lá nada. É aqui. Eu estava aqui, que o negócio apareceu aqui mesmo. Porta de casa.

Não falha. Todo dia desce neblina bem nessa curva. Estrada da Morte é coisa que veio daqui. Nessa vida na minha banca eu vi tudo que é batida. Aprendi com os resgates como ajuda os motoristas, os passageiros, e salvei um tanto bom. Mas morreu mais. Eu mesma, pra mim, eu tinha morrido uma vez. Uma carreta perdeu o freio e atravessou minha banca comigo dentro. Levou eu, lona, as bananas. De um cachorro que ficava lá comigo sobrou mas nem um toco de rabo. Nem o cheiro. Te falando, não é conversa. Eu, eu não sei. Sei que escapei. Só lembro de mim no meio da pista e uns carros devagar e meu menino maior bateu na minha cara e me tirou de lá. Bem ali ó. Pra gente daqui da terra, o gelo nem foi o mais estranho que já aconteceu.

Mas bom, estranho é. Do jeito que eu vejo começou antes. Uma lua, não sei, antes do negócio mesmo aparecer. Um carro de telefônica passando aqui na frente caiu nele um granizo. Um só. Mas enorme, só caiu, direto no vidro, atravessou quebrando. Feio de ver. Sei que os que gostam da mentira falam que não, que uma coisa não tem nada com a outra. Não, é? Tá. Mas tem é mesmo. Os dois homens do carro morreram na hora. Coitados, trabalhador, de Itarirama. Compraram banana comigo já. Eu daqui da banca ouvi a pancada e estranhei o barulho novo. Não era de carro com carro. Era até bonito, Deus que me perdoe. Barulho de estrela se estrela fizesse barulho. Os bombeiros cortaram o granizo com o serrotão deles e levaram com eles. Cortaram e não derreteu uma gota. Vi foi com meu olho. Tempo depois encontrei os bombeiros na cidade e perguntei pra eles. Desconversaram. Ê dona, deixa pra lá, e a gente deixa. A gente deixa.

Passou. Veio o dia do negócio mesmo. Te falar que era um dia de um solão difícil de ver aqui. A estrada sossegada até, pra um fim de feriado de tempo firme. Eu com as bananas e meus paninhos. O falecido é que era bananeiro. Eu ficava mais em casa, mas bordava um pouco também. Desde criança. Hoje meus meninos tocam a roça e a banca toco eu quase sempre. Nesse dia era assim, eu. E aquele sol. Trabina, meu vizinho, Deus o tenha, chegou. Conversamos nem cinco minutos e ele foi na mulinha dele. Sempre na mula. Falamos do sol que era estranho e ele falou que não dava meia hora e tudo ia mudar. Falei que se ele estava falando eu acreditava, mas que não parecia. Parecia que o sol ia varar a noite. Trabina era viúvo também. A gente estava se dando. Deu pena. Hoje acho que ele veio um pouco me avisar. Deu derrame na frente da casa nem da mula ele tinha apeado, disseram. Foi mesmo coisa de meia hora depois de me ver. Ele sabia, pra mim. Foi ele morrer e desceu a neblina.

Foi assim, um assalto. Um sol, aquele sol, e do nada uma neblina de quase não ver o outro lado da pista. Das minhas bananeiras, que essa encosta aqui é minha graças a Deus, não via nem cinco metros pra cima. Juntei na minha medalhinha que é esses dias que me lembram o acidente. Fiquei ouvindo os carros parando na curva. Os primeiros pararam derrapando pneu, os outro devagar, e eu pegada na medalha vendo as luzes enfileirando vermelhas de um lado e brancas do outro. Eles param mesmo, normal, e é quando dá as batidas. Normal. Mas nunca descem dos carros e dessa vez desceram. Foi ver aquilo e eu sabia que tinha coisa. Arrepiei igual bicho acuado. E então o ar esfriou.

Era que nem quando abre um freezer e bafeja um gelado que não é da natureza. Larguei minhas coisas e fui pra pista. O pessoal dos carros uns pra fora apontando os telefones à toa e outros fechando os vidros, trancando as portas. Cada vez gelava mais. Ali pelos carros já não era mais neblina, era mesmo fumaça de gelo. Eu tremi. Um casal estava sentado no capô abraçado olhando pra cima e não minto, tinha cara de drogado. Não devia ser, um jeito de gente séria, de turista das pousadas caras. Carrão e tudo. Não é por nada, de ver a gente sabe. Só que na cara dos dois estava que se drogaram. Não bebida — droga e droga mesmo. Um menino que devia ser filho deles saiu pela janela do carro e passou por mim indo lá pra trás. Já um moço duns doze anos, mas não consegui ver aquilo. Pensei nos meus meninos. Peguei ele na mão e levei pros pais. Eles não olharam pra mim, só falaram pra pôr lá. Pôr lá, vê você.

Olha a minha mão. Como o pessoal tem a pachorra de falar que não? Que o gelo foi coisa da TV, do computador? Ou que sim, que desceu, mas veio de bicho de outro planeta? Fosse isso pra mim é igual falar que não. Vê aqui o tamanho da cicatriz. É dos dentes do menino. Mexido igual os pais, drogado, não sei. Precisou de ET nenhum. O gelo foi coisa nossa mesmo, Deus que nos perdoe. Deus que nos perdoe.

No que os pais falaram assim de pôr ele de volta no carro o menino cravou os dentes na minha mão. Mas coisa de cachorro-do-mato, sem mentira. Chegou nos ossos. No susto eu abri a mão, o menino correu e num instante já estava dentro da fumaça de gelo. Não sangrou e eu sentia é nada. Olhei e vi lá dentro os nervos de cima da mão, branco e redondo parecendo canudinho. Era um sonho. Um pesadelo. Mexi os dedos e os nervos mexeram também no meio da carne vermelha e eu quase morri do coração porque não teve nem um fio de dor. Nada, nenhuma. Sangue só o que me subiu pra cabeça. Fui atrás do moleque e fui pra pegar.

Um frio, mas um frio do inferno. Não corro por causa do pé amputado, e aí devagar as orelhas e a ponta do nariz foram como que congelando. Só queria saber de olhar pra frente com a raiva do menino fechando a vista. Foi nisso que eu tropecei. Do chão vi aquela miséria. Misericórdia. Era homem e mulher tudo misturado. Não contei quantos porque não queria nem olhar, mas era bastante e uns já sem roupa. Nem pensei no cotoco. Levantei e apressei o passo no que deu.

Cheguei num instante no menino, lá na frente parado no gelado com o telefone apontado pra cima. Olhei também e foi quando vi. Enorme, batendo uns solavancos feito um balde descendo no poço. Chegou mais gente e eu sentei. Meus meninos na cabeça. Trabina também, que eu não sabia, mas já ia morto àquela hora. Todo mundo fazendo foto. Olhei pro rasgo e os nervos mexendo sem sangue. Cheguei a relar a ponta do dedo num deles. Senti nada. A ponta do gelo foi descendo e chegando na faixa que divide as pistas. Uma pirâmide de ponta-cabeça de gelo puro. Fechei o olho e me veio o falecido descendo a encosta com uns cachos nas costas e falando Lurdes, Lurdes e o nome que querem dar pro gelo.

— Iceberg?

Esse, isso. Lurdes, Lurdes, este é um iceberg. Desse jeito, você acha? Nunca falou assim na vida. Mas gostava de falar do que não sabia. Homem. Por isso sei que não é nem nunca foi iceberg. Esse é da água e dá no mar e fica parado. O daqui veio do céu, desceu até encostar só a pontinha e subiu voando de volta. Não sei o que foi, mas isso não foi. No que o gelo desapareceu o menino como que acordou e as pessoa voltaram pros carros. Tudo quieta. Foram embora e o tempo abriu de novo. Fui até onde a ponta do gelo encostou. Tinha uma pocinha no lugar do tamanho de uma cusparada grande. Levei a mão pra sentir a aguinha e vi que o corte estava sangrando. Fechei a mão e deu uma dor de gritar.

Você me pergunta como foi quando o tal do iceberg desceu do céu. É isso. Veio, encostou, subiu. Sobrou esses filmes e essas foto só com a fumaça e os carros parados e o silêncio das pessoas. Se fosse iceberg mesmo não dava pra ver ele? Então.

Mas vou te contar o que sobrou desse dia. Minha mão. Dói um diabo o tempo todo. Parece que entrou os dentes de um bicho venenoso e nunca mais saiu. Só em dia de frio é que não dói.

(Publicado no Jornal Relevo em setembro de 2019)

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