Ficção — Aquilo do vestido

cavername
6 min readJan 27, 2022

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Cleide diz gostar de Maria, e Maria diz gostar de Cleide, no que ambas não mentem e nem dizem a verdade. São sinceras ao afirmar apreço uma pela outra quando perguntadas sobre o motivo de tanta briga por causa do noivado do Édio (“Édio da Maria”) e da Cleidinha (“Cleidinha da Cleide”). “De novo, Cleide? Mas por quê?”, e Cleide respira fundo porque vai lembrar do passado. Do tempo de criança, ela e Maria inseparáveis, Cleide avermelhando e Maria enegrecendo sob o sol dos dias que passavam juntas em pastos e hortas; iria lembrar dos casamentos, ela e Maria confidentes, a chegada do sexo como delícia além do esperado e sua transformação repentina e irreversível em mais uma das tarefas domésticas; e também dos filhos, Cleide com sua Cleidinha, a única, afilhada de Maria, e Maria, a muito fértil mãe do Édio, com filhos e filhas aos montes, fértil até de ter filho morto e enterrado num caixão bem branco e bem pequeno; perguntada sobre as brigas recorrentes, Cleide respira fundo e fala: “Eu gosto dela — é a Maria!”, invocando o nome da comadre como uma palavra mágica que pudesse transformá-las de novo em só Cleide e em só Maria. “Acontece é que a gente agora parece sogra uma da outra, e não dos nossos filhos. E aquilo do vestido piorou tudo — quase que bota de inimiga nossas famílias”. Daí em diante, se esse episódio ganhou fama duradoura no distrito rural do Saltinho do Sessenta, foi não por causa de épicos de emboscada e vingança entre famílias rivais, mas porque quem nasce e se cria na região, mesmo que pacato demais, não desapega tão fácil de uma desavença. A história se firmou mais como uma azia, um mal‑estar chatinho e recorrente, mas suportável.

Aquilo do vestido: Cleide e Maria estavam no banco de trás da Caravan, Cleidinha entre elas; Vadico e Édio estavam na frente, Vadico ao volante; os cinco em direção à cidade pela estrada vicinal. Momento de azia em ponto máximo. Sacas de arroz em casca desprendiam lá de trás, do porta-malas que mala mesmo nunca viu, um cheiro de palha que se misturava ao do pó de terra vermelha entranhada no estofado. Mas esse cheiro não tinha presença o suficiente para se sobrepor a uma catinga de carniça que vinha de uma sacola no colo da noiva, fazendo com que o interior do carro cheirasse à queimada de cana, à terra, plantas e animais silvestres tostados juntos. Vadico, marido da Maria e pai do Édio, tinha negócios de chefe de família e dono de sítio. Ia à Casa Agrícola Macedo tanto comprar artigos para as batalhas contra parasitas, bicheiras e pragas quanto deixar o arroz para ser descascado na novíssima máquina beneficiadora, atração da loja. Mas a verdadeira missão era das mulheres que ocupavam tensas o banco traseiro — o assunto real daquele carro seria tratado na Margot A Rigor. O carro ia devagar, com a traseira arriada pelo peso do arroz, beliscando de vez em quando o acostamento para dar passagem aos treminhões. O cheiro era forte de enjoar, e o ar quente entrando pelas janelas parecia que só o piorava; parecia que cozinhava ainda mais o animal morto queimado. Édio até tentara puxar um papo para refrescar o clima, perguntando se estava ventando muito lá atrás, mas não se atreveu a falar mais nada depois que recebeu como resposta um azedume berrado do banco traseiro pela Cleidinha — ele emburrou e ficou cutucando o revestimento da porta do carro. Era ainda esse o humor quando chegaram na Margot A Rigor, onde foram recebidos pela proprietária, senhora diplomática que aparece recorrentemente em fotografias da coluna social da Gazeta de Braúna, sorrindo com magnanimidade como quem sabe que presta um favor ao jornal. Ela ouviu o problema das famílias sem esboçar surpresa ou censura; fez tudo parecer muito natural e corriqueiro e garantiu ter os melhores meios para tudo estar em ordem antes do casamento.

O caso, iniciado semanas antes dessa visita, é que Maria queria ela mesma costurar o vestido da afilhada, mas Cleide queria Margot e disso não abriu mão nem frente ao argumento da fama de Maria com tesouras, tecidos e máquinas de costura. Cleidinha estava do lado da mãe — sonhava-se entrando de Margot na igreja — e acionou o Édio, que acionou o Vadico, que lembrou Maria uma, duas, três ocasiões em que ela já tinha feito valer sua vontade, “Doce, até o dia você escolheu…”, e da coleção de fotos de vestidos Margot que a mulher guardava numa sacola plástica junto a moldes em papel pardo. Maria começou a ceder enquanto limpava uma galinha que ela havia matado, não sem antes lembrar quatro, cinco, seis vezes em que foi a comadre quem decidira monocraticamente algo do casamento. Mulher grande, maior que o Vadico uma cabeça, Maria ouvia os argumentos do marido de dentro de uma nuvem de vapor que subiu quando despejou água fervente na galinha. Ela quebrou com as mãos uma articulação de sobrecoxa e disse “Tá”, para então descer o que pareciam muitos metros até o marido, sentado à mesa, respirando seu fio de ar, uma respiração de filhote de animal doméstico, e fingindo brincar com uma cabeça de alho. Maria encostou a testa no ombro dele: “Mas até igreja foi ela que decidiu, Dico…”

Foi um encanto quando o vestido ficou pronto, dias antes de todos terem que subir no carro para essa nova ida à Margot. Tantas camadas de tantos tecidos: por baixo, lisos como um vento; por cima, rendados de se perder os olhos; as pernas iam escondidas na extroversão esférica da saia; o busto ia sugerido num collant com apliques brilhantes como o fogo de uma estrela que nasceu ontem. A brancura!, as luvas!, o véu!; era um Margot e Cleidinha estava dentro dele, em cima de uma plataforma redonda rodeada por espelhos e costureiras assistentes e observada pela mãe emocionada, de braços dados com Margot, e pela madrinha, mais de canto mas igualmente comovida.

No entanto havia um defeito, imaginado por Maria e por ela contado só à Cleidinha, já no sítio, num quarto, enquanto enfiavam o vestido de volta no plástico resistente, com zíper nas laterais e publicidade da loja de Margot impressa em letras roxas. “Nina, olha aqui. Olha. Amarelado”, o indicador de Maria corria entre as pedrinhas da parte superior, “Aqui, aqui, aqui”, apontando defeitos para uma afilhada cética. “É cola. Fizeram de qualquer jeito, e você não vai entrar assim na igreja. Nem na festa. Eu vou lavar”. O indicador agora esticou-se e veio à boca, na vertical, “Sua mãe já já vem do banheiro”, e os olhos duros de Maria derrubaram a afilhada: “Sem falar pra ela!”.

De fato, nada foi dito, não naquele momento; tudo só foi contado depois, quando o vestido já estava impregnado com o fedor resistente do sabão de sebo usado em excesso por Maria para vencer o amarelado imaginário e uma operação de emergência era necessária para retirar Cleidinha do desespero — “Meu vestido! Como vou casar assim agora?!” — e Cleide da fúria. Também nada disso foi contado para Margot; para ela, por uma Maria falando rápido como se as palavras estivessem pelando e observada de perto pela comadre e pela afilhada, só foram ditos os fatos estritamente necessários. O vestido de molho no tanque (“e nem foi tanto tempo assim”), depois de esfregado (“por dentro e devagar”) com o sabão em pedra feito por Maria com gordura de novilha acumulada durante meses, normalmente só usado para as roupas de roça dos homens da casa (“mas também, pega cheiro demais esse tecido!”).

Maria não aguentou, e começou a extrapolar a circunscrição do que era indispensável comentando a recusa de Cleidinha em permitir mais uma lavagem, “com o mesmo sabão em pó que eu sei que você vai usar, Margot, só que ela abriu o berreiro e não deixou”, mas foi interrompida por um pigarreio educado de Margot.

“Perfeitamente. Eu resolvo”, e Margot entregou o vestido a uma assistente com dificuldades para segurar o riso. “Um chá, senhoras?”

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